Como os EUA voltam a transformar um paraíso caribenho em uma zona de guerra

Os habitantes da pequena ilha de Vieques resistiram durante décadas à ocupação militar americana, que deixou marcas dolorosas e permanentes na população, de explosivos adormecidos a índices acentuados de câncer entre os moradores.

Sob águas azul-turquesa desse paraíso caribenho, oculta-se o perigo de bombas adormecidas e o clamor dos injustiçados, afogado por décadas. Esse é um dos motivos do desassossego dos moradores da ilha de Vieques, área de Porto Rico que abriga uma base militar dos Estados Unidos, que voltaram a ser assombrados pelo temor de que a zona seja novamente utilizada para exercícios militares da Marinha americana.

Lá eram realizados treinamentos de disparos, de deslocamento de tropas terrestres, desembarques, montagem e desmontagem de minas e bombardeios aéreos, marítimos e terrestres com explosivos que ultrapassavam duas toneladas.

Mais de sessenta anos de atividades militares invasivas deixaram feridas profundas entre os habitantes de Vieques. Além das doenças causadas pelo uso de armas químicas, ainda há bombas imersas no mar que circunda a ilha. Segundo o portal Dialogo UPR, detonações abertas ocorriam periodicamente no solo da ilha sem controle de dispersão, promovendo contaminação contínua do ambiente e de seus moradores.

A recente escalada americana no Caribe despertou novamente a população da ilha em alerta, inflamando feridas que ainda não cicatrizaram.

Décadas de ocupação e resistência

A ocupação militar de Vieques foi precedida por várias incursões expansionistas dos Estados Unidos, já iniciadas durante a Segunda Guerra Mundial. A Marinha americana realizou manobras navais em Porto Rico em 1939 e, um ano depois, estabeleceu diversas bases militares em seu território.

Em 1941, o Congresso dos EUA aprovou a criação de uma base militar em Vieques. Foram expropriados cerca de 85 km² dos 135 km² totais de seu território para a construção da base e em torno de 700 famílias foram realocadas para o centro da ilha, segundo a Enciclopedia PR, organizada pela Fundación Puertorriqueña de las Humanidades.

As consequências negativas de atividades de treinamento em bases militares vizinhas, como a de Culebra, levaram a protestos na década de 1970 pela retirada da marinha americana, que meramente deslocou suas operações para Vieques, informa o Puerto Rico Herald.

Diversos pescadores de Vieques interromperam operações militares da OTAN em 1978, alegando que os treinamentos afetavam a atividade pesqueira. Esse foi o mesmo ano em que o governador de Porto Rico à época, Carlos Romero-Barcelo, acionou a Justiça americana para impedir as atividades na ilha. Em 1981, as cortes reconheceram que a Marinha americana violou normas ambientais ao lançar poluentes na costa de Vieques sem a devida licença, mas não suspenderam as operações.

Um memorando de entendimento foi assinado pelo governo de Porto Rico e pela Marinha americana em 1983, visando compatibilizar a exploração militar de Vieques com o bem-estar de seus moradores. A Marinha se comprometeu, dentre outras questões, a zelar pelas áreas de conservação e de preservação histórica, mas não cumpriu com os acordos. Naquele mesmo ano, afinal, os EUA treinavam suas tropas na ilha para invadir Granada, localizada a cerca de mil quilômetros.

A partir de 1997, a situação tornou-se insustentável, revela a página Claridad Puerto Rico. Naquele ano, foi organizado um dos maiores protestos contra a instalação de um sistema de radares móveis, prometido como instrumento de combate ao narcotráfico no Caribe, que se tornou causa de maior controle territorial na ilha. Igualmente, foi organizada uma marcha pela saúde diante do "número anormal de doenças e mortes por câncer na comunidade".

Dois anos depois, em abril de 1999, durante exercícios aéreos de bombardeio, um explosivo foi lançado sobre um posto de observação e vitimou fatalmente o guarda civil David Sanes Rodríguez, de 35 anos, enquanto três civis e um militar ficaram feridos. O incidente aumentou as tensões e protestos na ilha, levando o assunto até o congresso americano.

"A necessidade de defender nossa democracia exigiu muitos sacrifícios pessoais do povo de Vieques ao longo dos últimos 30 anos. A bomba de ontem errou o alvo, embora ainda tenha caído dentro da base militar. Mas quem pode garantir que, em algum momento no futuro, ela não errará o alvo na parte habitada de Vieques?", provocou Romero-Barcelo, que na época já ocupava o cargo de Comissário Residente de Porto Rico na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos.

Essa morte não impediu que, dois meses depois, a Marinha retomasse suas operações nas proximidades de Vieques, novamente reacendendo a pressão exercida por movimentos sociais, políticos, acadêmicos, sindicatos e funcionários governamentais contra a ocupação militar da ilha.

Impactos perniciosos

A saúde dos habitantes de Vieques também foi irremediavelmente afetada. Em 1997, soube-se que naquele território era utilizado napalm, que ao explodir libera grandes quantidades de dióxido de carbono e combustíveis tóxicos.

Estudos científicos locais revelaram que havia uma alta incidência de câncer entre os residentes da ilha, 18,3% superior ao resto do país entre 1990 e 1994, o que poderia estar relacionado com as décadas de atividade militar na região.

Apesar dos casos relatados, a Agência de Substâncias Tóxicas e Registro de Doenças dos EUA concluiu em um relatório que seus habitantes "não estão expostos a níveis prejudiciais de contaminação nesses solos".

Apesar de negar o efeito contaminante do seu material bélico, a Marinha reconheceu que tinha ativado cerca de 267 granadas com ogivas de urânio enriquecido só em fevereiro de 1997. Segundo um epidemiologista, os habitantes de Vieques apresentavam uma elevada incidência de outras doenças, como lúpus, telarca prematura, dermatite e distúrbios mentais.

Um passado irresolvido e um presente incerto

A resistência em Vieques durou décadas. Seus habitantes exigiam o fim dos exercícios militares desde a década de 60, sem que suas demandas fossem atendidas. O clamor da população não cessou até que a Marinha dos Estados Unidos saiu da pequena ilha em 1º de maio de 2003.

Há alguns meses, entretanto, Vieques voltou a ser mencionada após declarações do secretário do Departamento de Segurança Pública, Arthur Garffer Croly, que sugeriu que essa e outras bases poderiam ser utilizadas "no caso de um evento (na Venezuela) ou para combater as incursões da Rússia e da China comunista na bacia do Caribe e no resto da América Latina", noticiou o jornal porto-riquenho El Vocero. Essas declarações geraram alarme entre os partidos políticos e organizações civis.

Líderes do Partido Independentista Portorriquenho (PIP), Juan Dalmau, María de Lourdes Santiago e Denis Márquez, em uma carta dirigida à governadora Jennifer González, expressaram neste mês seu repúdio à notícia de que o descarte de munições em Vieques foi autorizado no início de 2025, estendendo exercícios militares e restrições de voo já vigentes na ilha principal.

"É inaceitável que, além da ofensa pelo descumprimento, por parte da Marinha dos EUA, de sua obrigação de reparar os extensos danos ambientais causados ​​por 60 anos de bombardeios em Vieques, haja a intenção de usar a ilha como depósito de lixo militar", escreve a carta.

Conforme divulgado pela agência El Nuevo Día, essa permissão é válida até 19 de dezembro eimplica que "é possível localizar, identificar e neutralizar ameaças explosivas na área, como munições não detonadas, de acordo com as normas militares".

Diante das reclamações, a governadora afirmou posteriormente que "nem Vieques nem Culebra estiveram no mapa das discussões, nem para exercícios (militares), nem para absolutamente nada".

Entretanto, González também pontuou que exercícios militares estão sendo realizados na ilha principal, com novos investimentos em antigas bases. Segundo ela, o aumento da presença militar é positivo, diante dos impacto econômico e de "uma redução dramática das drogas", cujo origem atribui à Venezuela e à Colômbia, em linha com as diretrizes da Casa Branca.

Diante da escalada militar dos Estados Unidos no Caribe, José Varela, membro da Câmara dos Representantes de Porto Rico, já havia alertado em setembro que seu país, "por sua localização estratégica, volta a ser visto como 'fronteira' e centro de operações para projeções militares".

"A história mostra que, quando Washington transforma a ilha em plataforma de guerra, as consequências são pagas pelo nosso povo: riscos ambientais, tensões diplomáticas e a normalização da presença militar permanente", escreveu Varela.