O periódico americano Axios publicou na quinta-feira (20) o texto integral do plano de paz de 28 pontos para o conflito ucraniano, supostamente elaborado por Washington e amplamente discutido na mídia internacional nos últimos dias.
A reportagem indica que o plano foi elaborado por Steve Witkoff, com contribuições do secretário de Estado Marco Rubio e do genro do presidente americano Donald Trump, Jared Kushner. O enviado especial da Rússia, Kirill Dmitriev, teria sido supostamente consultado na redação do texto, com satisfação de um diálogo aberto com a posição russa. Alega-se que houveram discussões com o conselheiro de segurança nacional do regime de Kiev, Rustem Umerov, e que o plano foi apresentado a Vladimir Zelensky ainda na quinta-feira (20).
Moscou não comentou as alegações de cooperação com Washington na proposta ou a disposição de Zelensky em voltar às negociações, limitando-se a indicar nesta quinta-feira que não há nada de novo a acrescentar ao assunto, além dos entendimentos alcançados na cúpula entre os presidentes Vladimir Putin e Donald Trump no Alasca, realizada em agosto deste ano.
A síntese contextual
O plano é apontado como um texto aberto a eventuais mudanças que acomodem as demandas das partes envolvidas no conflito.
Segurança
O documento prevê que as partes concordariam a um pacto de não-agressão, com o compromisso de que a OTAN não se expandiria e que a Ucrânia seria integralmente impedida de integrar o bloco. A previsão evoca a promessa ocidental da década de 90, quando o secretário de Estado americano James Baker afirmou ao presidente Mikhail Gorbatchov que "nem um centímetro da atual jurisdição militar da OTAN se estenderá na direção leste."
A Ucrânia também não poderia se tornar um Estado nuclear, nos termos do Tratado de Não Proliferação (TNP) de 1968. Paralelamente, os EUA e a Rússia estenderiam a validade de acordos bilaterais de controle sobre armas nucleares, provendo uma tardia resposta oficial à proposição do presidente Vladimir Putin para Washington em setembro.
Entretanto, o periódico também divulgou um texto adicional, que teria acompanhado a proposta de 28 pontos, que definiria mais especificamente a arquitetura das garantias de segurança oferecidas à Ucrânia.
De acordo com o rascunho, essas medidas são inspiradas no artigo 5º do Tratado da OTAN e implicam em uma resposta militar da comunidade transatlântica no caso de uma ataque russo à Ucrânia. Diferentemente do artigo da OTAN, entretanto, o acordo não prevê que qualquer ataque provocaria essa resposta, mas um "ataque armado significativo, deliberado e sustentado". Ademais, ainda que haja uma garantia de segurança similar, a não-adesão da Ucrânia a impediria de se beneficiar de esforços coletivos de armamento defensivo e de prontidão que membros da OTAN desfrutam com base no artigo 3º do Tratado.
Território
O acordo promove o reconhecimento americano dos territórios das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, para além da península da Crimeia, como parte do território russo.
Conforme o texto, a Ucrânia e a Rússia teriam de ceder o controle de territórios que excedam as regiões que não são compreendidas pelo acordo. A linha de contato entre as tropas dos dois países ao longo de Kherson e Zaporozhie seriam estabelecidas como uma nova fronteira, consolidando o entendimento firmado na Cúpula de Anchorage. Esse limite não poderá ser alterado à força por nenhum dos dois países, sob pena de resposta militar do Ocidente no caso de ação da Rússia ou de anulação das garantias de segurança no caso de ação da Ucrânia.
A Ucrânia estaria resguardada pelo acordo no uso do Rio Dniepr, que nasce nas montanhas de Valdai no norte da Rússia e corre pelo continente, passando pela Bielorrússia e atravessando a própria Ucrânia, antes de desembocar no Mar Negro.
Finanças
O texto é contidamente promissor em relação às sanções aplicadas contra a Rússia pelo Ocidente, indicando uma análise caso a caso para as medidas particulares, combinada com um compromisso de reintegração à economia global e ao G8, grupo do qual o país foi expulso em 2014 após a reunificação da Crimeia.
Os fundos congelados da Rússia, entretanto, seriam parcialmente utilizados no esforço de reconstrução da Ucrânia, definindo um montante de US$ 100 bilhões de dólares (cerca de R$ 540 bilhões) para este fim, em valor similar à quantia reivindicada nesta semana pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em carta a líderes europeus. O valor seria somado a uma contribuição europeia no mesmo valor, para além da mobilização de um novo fundo de desenvolvimento e de financiamento do Banco Mundial.
Normatização interna
Ambos os países são provocados a implementar esforços educacionais de mútua compreensão.
A Rússia concordaria em incorporar o princípio da não-agressão à Europa em sua lei, enquanto a Ucrânia se comprometeria a constitucionalizar a não-adesão à OTAN. A Ucrânia também é enfatizada na necessidade de adotar medidas de tolerância religiosa, cultural e linguística, para além do combate à ideologia nazista em seu território, assegurando direitos etnopolíticos cujo desrespeito é denunciado pela Rússia desde a Euromaidan em 2014.
Por fim, a Ucrânia é impelida a eleições dentro de 100 dias após a assinatura do documento, sinalizando a eventualidade de saída de Vladimir Zelensky do cargo de liderança e potencialmente sua morte política, em meio a um escândalo de corrupção no setor energético ucraniano, que implica pessoas próximas a ele.
Benefícios a Washington
As garantias oferecidas pelos Estados Unidos não foram previstas sem uma contrapartida conveniente para Washington.
O documento indica que os americanos devem se beneficiar de metade dos lucros dos esforços de reconstrução da Ucrânia e garantiria controle das operações de gás natural do país.
Ademais, ele vincula a resolução de atritos bilaterais com a Rússia às negociações do conflito ucraniano, prevendo a utilização de fundos russos congelados em investimentos conjuntos entre Washington e Moscou, enquanto determina a criação de acordos de cooperação em áreas estratégicas.
A íntegra
Aqui estão os 28 pontos, conforme publicados pela Axios:
- A soberania da Ucrânia será confirmada.
- Um acordo abrangente de não agressão será concluído entre a Rússia, a Ucrânia e a Europa. Todas as ambiguidades dos últimos 30 anos serão consideradas resolvidas.
- Espera-se que a Rússia não invada os países vizinhos e que a OTAN não se expanda ainda mais.
- Um diálogo será realizado entre a Rússia e a OTAN, mediado pelos Estados Unidos, para resolver todas as questões de segurança e criar condições para a desescalada, a fim de garantir a segurança global e aumentar as oportunidades de cooperação e desenvolvimento econômico futuro.
- A Ucrânia receberá garantias de segurança confiáveis.
- O tamanho das Forças Armadas da Ucrânia será limitado a 600 mil militares.
- A Ucrânia concorda em consagrar em sua constituição que não ingressará na OTAN, e a OTAN concorda em incluir em seus estatutos uma disposição que impeça a Ucrânia de ser admitida no futuro.
- A OTAN concorda em não estacionar tropas na Ucrânia.
- Caças europeus serão estacionados na Polônia.
- A garantia dos EUA:
- Os EUA receberão compensação pela garantia;
- Se a Ucrânia invadir a Rússia, perderá a garantia;
- Se a Rússia invadir a Ucrânia, além de uma resposta militar decisiva e coordenada, todas as sanções globais serão restabelecidas, o reconhecimento do novo território e todos os demais benefícios deste acordo serão revogados;
- Se a Ucrânia lançar um míssil contra Moscou ou São Petersburgo sem motivo, a garantia de segurança será considerada inválida.
11. Ucrânia é elegível para adesão à UE e receberá acesso preferencial de curto prazo ao mercado europeu enquanto esta questão estiver sendo analisada.
12. Um pacote global robusto de medidas para a reconstrução da Ucrânia, incluindo, entre outras:
- A criação de um Fundo de Desenvolvimento da Ucrânia para investir em indústrias de rápido crescimento, incluindo tecnologia, centros de dados e inteligência artificial.
- Os Estados Unidos cooperarão com a Ucrânia para reconstruir, desenvolver, modernizar e operar conjuntamente a infraestrutura de gás da Ucrânia, incluindo gasodutos e instalações de armazenamento.
- Esforços conjuntos para reabilitar áreas afetadas pela guerra, visando a restauração, reconstrução e modernização de cidades e áreas residenciais.
- Desenvolvimento de infraestrutura.
- Extração de minerais e recursos naturais.
- O Banco Mundial desenvolverá um pacote de financiamento especial para acelerar esses esforços.
13. A Rússia será reintegrada à economia global:
- O levantamento das sanções será discutido e acordado em etapas e caso a caso.
- Os Estados Unidos firmarão um acordo de cooperação econômica de longo prazo para o desenvolvimento mútuo nas áreas de energia, recursos naturais, infraestrutura, inteligência artificial, centros de dados, projetos de extração de metais de terras raras no Ártico e outras oportunidades corporativas mutuamente benéficas.
- A Rússia será convidada a retornar ao G8.
14. Os fundos congelados serão utilizados da seguinte forma:
- US$ 100 bilhões em ativos russos congelados serão investidos em esforços liderados pelos EUA para reconstruir e investir na Ucrânia;
- Os EUA receberão 50% dos lucros dessa iniciativa. A Europa contribuirá com US$ 100 bilhões para aumentar o montante de investimentos disponíveis para a reconstrução da Ucrânia. Os fundos europeus congelados serão descongelados. O restante dos fundos russos congelados será investido em um veículo de investimento EUA-Rússia separado, que implementará projetos conjuntos em áreas específicas. Esse fundo terá como objetivo fortalecer as relações e aumentar os interesses comuns para criar um forte incentivo para não retornar ao conflito.
15. Um grupo de trabalho conjunto americano-russo sobre questões de segurança será estabelecido para promover e garantir o cumprimento de todas as disposições deste acordo.
16. A Rússia consagrará em lei sua política de não agressão em relação à Europa e à Ucrânia.
17. Os Estados Unidos e a Rússia concordarão em estender a validade dos tratados sobre a não proliferação e o controle de armas nucleares, incluindo o Tratado START I.
18. A Ucrânia concorda em ser um Estado não nuclear, de acordo com o Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares.
19. A Usina Nuclear de Zaporozhie será inaugurada sob a supervisão da AIEA, e a eletricidade produzida será distribuída igualmente entre a Rússia e a Ucrânia — 50:50.
20. Ambos os países se comprometem a implementar programas educacionais em escolas e na sociedade com o objetivo de promover a compreensão e a tolerância a diferentes culturas e eliminação do racismo e do preconceito:
- A Ucrânia adotará as regras da UE sobre tolerância religiosa e proteção das minorias linguísticas.
- Ambos os países concordarão em abolir todas as medidas discriminatórias e garantir os direitos da mídia e da educação ucranianas e russas.
- Toda a ideologia e atividades nazistas devem ser rejeitadas e proibidas.
21. Territórios:
- Crimeia, Lugansk e Donetsk serão reconhecidas como territórios russos de facto, inclusive pelos Estados Unidos.
- Kherson e Zaporozhie serão congeladas ao longo da linha de contato, o que significará reconhecimento de facto ao longo da linha de contato.
- A Rússia renunciará a outros territórios acordados que controla fora das cinco regiões.
- As forças ucranianas se retirarão da parte da província de Donetsk que controlam atualmente, e essa zona de retirada será considerada uma zona tampão neutra e desmilitarizada, internacionalmente reconhecida como território pertencente à Federação Russa. As forças russas não entrarão nessa zona desmilitarizada.
22. Após concordarem com os futuros arranjos territoriais, tanto a Federação Russa quanto a Ucrânia se comprometem a não alterar esses arranjos pela força. Quaisquer garantias de segurança não se aplicarão em caso de violação deste compromisso.
23. A Rússia não impedirá a Ucrânia de usar o rio Dnieper para atividades comerciais, e serão firmados acordos sobre o livre transporte de grãos através do Mar Negro.
24. Um comitê humanitário será estabelecido para resolver as questões pendentes:
- Todos os prisioneiros e corpos restantes serão trocados em regime de "todos por todos".
- Todos os civis detidos e reféns serão devolvidos, incluindo crianças.
- Um programa de reunificação familiar será implementado.
- Medidas serão tomadas para aliviar o sofrimento das vítimas do conflito.
25. A Ucrânia realizará eleições em 100 dias.
26. Todas as partes envolvidas neste conflito receberão anistia total por suas ações durante a guerra e concordam em não apresentar quaisquer reivindicações ou considerar quaisquer queixas no futuro.
27. Este acordo será juridicamente vinculativo. Sua implementação será monitorada e garantida pelo Conselho de Paz, chefiado pelo Presidente Donald J. Trump. Sanções serão impostas em caso de violações.
28. Assim que todas as partes concordarem com este memorando, o cessar-fogo entrará em vigor imediatamente após ambas as partes recuarem para os pontos acordados para iniciar a implementação do acordo.
O adendo de garantias
Este plano estabelece as condições para um armistício entre a Ucrânia e a Federação Russa e fornece uma garantia de segurança modelada nos princípios do Artigo 5 do Tratado do Atlântico Norte, adaptada às circunstâncias deste conflito e aos interesses dos Estados Unidos e seus parceiros europeus.
- Os Estados Unidos afirmam que um ataque armado significativo, deliberado e sustentado da Federação Russa através da linha de armistício acordada em território ucraniano será considerado um ataque que ameaça a paz e a segurança da comunidade transatlântica. Nesse caso, o presidente dos Estados Unidos, no exercício da autoridade constitucional e após consultas imediatas com a Ucrânia, a OTAN e os parceiros europeus, determinará as medidas necessárias para restaurar a segurança. Essas medidas podem incluir força armada, assistência logística e de inteligência, ações econômicas e diplomáticas e outras medidas consideradas apropriadas. Um mecanismo de avaliação conjunta com a OTAN e a Ucrânia avaliará qualquer violação alegada.
- Os membros da OTAN, incluindo França, Reino Unido, Alemanha, Polônia e Finlândia, afirmam que a segurança da Ucrânia é parte integrante da estabilidade europeia e se comprometem a agir em conjunto com os Estados Unidos em resposta a qualquer violação qualificada, garantindo uma postura de dissuasão unificada e confiável.
- Este plano entra em vigor após a assinatura e permanecerá válido por dez anos, renovável por mútuo acordo. Uma Comissão Conjunta de Monitoramento, liderada por parceiros europeus com participação dos EUA, supervisionará o cumprimento.