A gravação do videoclipe They Don’t Care About Us, de Michael Jackson, em 1996, envolveu uma das negociações mais inusitadas da história da música pop: o diálogo entre a equipe do cantor e integrantes do Comando Vermelho, facção criminosa que controlava a favela Santa Marta, no Rio de Janeiro.
Com direção do cineasta Spike Lee, o projeto tinha um propósito político. A música, lançada como quarto single do álbum HIStory: Past, Present and Future, Book I, denunciava o racismo, a brutalidade policial e a violência estatal.
Para dar força ao discurso, Jackson quis filmar em comunidades brasileiras e escolheu Salvador e o morro Santa Marta como locações, segundo informações da Billboard.
A decisão gerou atritos com as autoridades cariocas, que temiam prejuízos à imagem da cidade e à candidatura do Rio para os Jogos Olímpicos de 2004.
De acordo com uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, um juiz chegou a proibir a gravação temporariamente, medida que depois foi revogada. Sem o apoio da polícia, a produção precisou garantir segurança por outros meios.
Em entrevista concedida anos depois, Spike Lee fez revelações sobre o episódio.
"Para garantir a segurança de Michael, tivemos que conversar com o traficante Marcinho VP, porque a polícia se recusava a subir o morro", disse Lee ao portal Page Six.
Kátia Lund, cineasta brasileira que trabalhava com Lee, foi designada para intermediar o contato. Segundo ela, Marcinho enviou um recado aos produtores de Jackson.
"Se fizerem o vídeo com Michael, podem deixar um milhão de dólares na rua que ninguém tocará. Com Michael Jackson aqui, este será o lugar mais seguro do mundo", teria dito o líder da organização criminosa.
A equipe afirmou não ter pago nada ao grupo criminoso. "Ele era apenas um grande fã de Michael", contou o diretor. A gravação seguiu em clima de celebração.
O então chefe de segurança do Rio de Janeiro, general Nilton Cerqueira, contestou a versão da equipe do cantor, de acordo com uma matéria publicada pelo portal Masala.
Em declarações, afirmou que houve, sim, um acordo prévio com as autoridades para garantir a segurança durante as filmagens, mas criticou o fato de o grupo de produção ter se apoiado em traficantes locais em vez de seguir a coordenação oficial da polícia.
Moradores da favela participaram das filmagens, e o astro dançou em outro momento do clipe com o grupo Olodum, de Salvador, num dos momentos mais marcantes da produção.
O vídeo, que mistura percussão, cores e expressões populares, hoje ultrapassa 1,2 bilhão de visualizações no YouTube.
Em 2010, o portal g1 informou sobre a inauguração de uma estátua de Michael Jackson no alto da Santa Marta, símbolo da transformação da comunidade, que anos depois recebeu a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio.
Marcinho VP, que autorizou as filmagens, foi encontrado morto em 2003 no presídio de segurança máxima Bangu 3, onde cumpria pena por tráfico de drogas. As autoridades apontaram morte por asfixia, disse o jornal Folha de S.Paulo.
Mais de 25 anos após o episódio, o Comando Vermelho continua sendo uma das principais facções criminosas do Brasil. Em outubro de 2025, confrontos entre o grupo e a polícia resultaram em uma das maiores operações já registradas no Rio de Janeiro, com 121 mortos e 81 presos nos Complexos do Alemão e da Penha.