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O Norte lava, o Sul paga: a hipocrisia americana com o dinheiro sujo da droga

As táticas agressivas do governo americano diante da declaração de combate ao tráfico internacional de drogas contrastam com uma postura branda com a lavagem de dinheiro que torna os Estados Unidos um destino melhor para dinheiro sujo do que os conhecidos paraísos fiscais.
O Norte lava, o Sul paga: a hipocrisia americana com o dinheiro sujo da drogaJoe Raedle / Gettyimages.ru

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, está aumentando sua presença militar no Caribe sob o pretexto de conduzir uma campanha antidrogas que visa cortar suprimentos de narcóticos que chegam a seu país. Entretanto, os dados do mercado de substâncias ilícitas revelam uma realidade discordante e muito conveniente para Washington.

O mercado das drogas

O Relatório Mundial sobre Drogas de 2025, publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, constatou que o tráfico ilícito continua a gerar receita tanto nos EUA quanto na União Europeia (UE).

Enquanto o escritório de análise econômica do governo americano identifica que o mercado de substâncias ilícitas contribuiu em cerca de US$ 110 bilhões (aproximadamente R$ 600 bilhões) com o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos em 2017, o relatório da ONU aponta que a renda gerada em 2016 foi de US$ 146 bilhões (R$ 785 bilhões). Desse total, a maconha era a principal substância no mercado americano, seguida pela heroína, logo pela metanfetamina e, por fim, pela cocaína.

Os Estados Unidos são o maior consumidor mundial de drogas, estima-se que mais de 12 milhões de americanos apresentem transtornos por uso de substâncias. O segundo lugar nas estimativas é ocupado pela China, com pouco mais da metade dos números americanos e uma população quatro vezes maior.

A partir dos relatórios sobre apreensão de drogas entre 2020 e 2023, o documento expôs que a maior parte do suprimento do mercado americano de cocaína vem dos países andinos a partir de rotas no Oceano Pacífico, sendo menor o volume proveniente da fronteira com o México e ainda menor pelo Caribe.

O suprimento de heroína e metanfetamina é fundamentalmente atribuído à fronteira mexicana, enquanto que a canábis, por ser nacionalmente produzida e mais levemente regulada, não foi mapeada na publicação.

Lavagem de dinheiro

Pesquisas da ONU identificam que há mais dinheiro do mercado de drogas entrando nos países produtores do que saindo. Ao avaliar os valores das transações financeiras de compra e venda de substâncias; ou seja, na cadeia produtiva internacional da droga, o lucro da venda excede o custo de produção. Entretanto, o movimento do dinheiro após a troca comercial vai em outro caminho.

A organização americana Global Financial Integrity (GFI), dedicada a monitorar as movimentações internacionais de dinheiro sujo, reforçou o impacto das cadeias globais dos mercados ilícitos para o Sul Global. Ela enfatiza que, "para países em desenvolvimento, [o fluxo ilícito de dinheiro] representa frequentemente centenas de milhões de dólares em receitas fiscais perdidas". Mas, cabe a pergunta: perdidas para quem?

"Cada dólar que sai de um país deve acabar em outro. Muitas vezes, isso significa que dinheiro ilícito de países em desenvolvimento acaba em bancos de países desenvolvidos, como os Estados Unidos e o Reino Unido, bem como em paraísos fiscais como Suíça, Ilhas Virgens Britânicas ou Singapura", revela a publicação.

Os estudos observam os mercados ilícitos internacionais como um fenômeno complexo que envolve diferentes estruturas e organizações. O tráfico de drogas é caracterizado como uma fonte comum de financiamento para organizações criminosas frequentemente acompanhada de outras atividades econômicas, cujas rendas precisam se tornar legítimas pelo processo conhecido como lavagem de dinheiro. Uma das atuais prioridades declaradas da política externa americana é a ofensiva contra a atividade comercial do mercado de drogas;  o controle de divisas, o aspecto financeiro dos esquemas criminosos, não é.

Os Estados Unidos atualmente ocupam a primeira posição no índice mundial de sigilo financeiro, ultrapassando a Suíça e Singapura, países comumente associados a paraísos fiscais. O índice, organizado pela associação britânica Tax Justice Network, é calculado por uma avaliação de tolerância das leis e regulamentos do país em relação a operações sigilosas e do volume de serviços oferecidos pelo sistema bancário a pessoas fora do país. Atualmente, como apontou reportagem do Politico, as regulações internas que barram a lavagem de dinheiro estão sendo flexibilizadas.

A associação de pesquisadores ainda publicou neste ano um estudo que identificou que os Estados Unidos representam o maior risco global ao Brasil em evasão de divisas. "Os EUA se destacam como principal destino de investimentos de cidadãos brasileiros, que ultrapassam US$ 21 bilhões" (cerca de R$ 113 bilhões), revela o estudo. "As autoridades brasileiras não têm informações cruciais sobre os investimentos [...] nos EUA, dificultando os esforços de investigação e auditoria."

O ex-ministro da educação nacional de Gustavo Petro, o colombiano Alejandro Gaviria Uribe, já expôs em publicações acadêmicas e jornalísticas a hipocrisia da intervenção externa no comércio de drogas e da receptividade do dinheiro sujo.

Em publicação antiga do periódico The Guardian, o ex-ministro afirmou que "enormes lucros são obtidos pelas redes de distribuição criminosas nos países consumidores e reciclados por bancos que operam sem nada similar às restrições que sujeitam o próprio sistema bancário da Colômbia.”

Ferramenta geopolítica

A relevância do dinheiro do tráfico na economia americana não é uma informação inédita. A fundação educacional WGBH, em texto para o documentário "Quem Lucra com as Drogas?" de 1989, publicado nas páginas da biblioteca digital do governo americano, já apontava que "o dinheiro do tráfico de drogas é lavado e depois devolvido aos Estados Unidos, onde geralmente é investido em barcos, empresas, no mercado de ações e em imóveis comerciais e residenciais."

Entretanto, o monitoramento das finanças é um instrumento mais associado pelo governo americano ao combate do financiamento do terrorismo. A questão do mercado internacional de drogas é enfrentada de maneira diferente. Táticas de bombardeio no mar e ameaças de sanções ou medidas mais severas são intercaladas com acusações de impotência, tolerância ou até associação com o tráfico aos governantes latino-americanos e caribenhos.

A acusação de impotência também não é inédita na política americana para a região. O presidente americano Theodore Roosevelt já havia feito a mesma denúncia em 1904 como justificativa de intervenção em nome da civilização ocidental. "[..] Uma impotência que resulta em um afrouxamento geral dos laços da sociedade civilizada podem, na América, como em outros lugares, exigir, em última análise, a intervenção de alguma nação civilizada", declarou Roosevelt ao parlamento americano à época.

A acusação ainda evoca o conceito de falência estatal, discutido nas organizações internacionais e utilizado para designar a inexistência de um governo efetivo em determinado Estado-Nação.

A acusação de falência tem implicações de segurança à comunidade internacional e já foi utilizada como justificativa para o uso do artigo 39 da Carta das Nações Unidas pelo Conselho de Segurança da organização, autorizando intervenções militares contínuas na Somália (1992, 2007 e 2009), na Libéria (2003), no Afeganistão (2001), no Sudão (2007) e em Serra Leoa (1999).