
Data center do TikTok em terra habitada por indígenas gera protestos e alerta de falta d'água no CE

O anúncio da instalação de um data center do TikTok no Complexo Industrial e Portuário do Pecém, no Ceará, desencadeou uma onda de mobilizações populares e denúncias por parte de moradores e comunidades indígenas da região. A informação foi publicada em reportagem especial do The Intercept Brasil nesta quarta-feira (17).

O projeto, liderado pela empresa Casa dos Ventos, prevê o consumo diário de 30 mil litros de água e despertou o receio de que a infraestrutura acirre ainda mais a histórica desigualdade no acesso à água em Caucaia e São Gonçalo do Amarante.
"Desde que eu nasci aqui, nós sofremos por água", conta Jordana Nunes, moradora da comunidade do Feijão, em Caucaia, entrevistada pelo Intercept.
A 25 quilômetros do local previsto para o empreendimento, Nunes resume a indignação com uma frase que ganhou as ruas em placas espalhadas pela região: "Água para o povo, não para data centers".

O modelo adotado pelo governo cearense para atrair investimentos – com promessas de segurança hídrica às empresas – se contrapõe à realidade de centenas de famílias que dependem de caminhões-pipa ou programas sociais para ter acesso à água.
"Os pobres vão ficar sem água, a zona rural vai ficar sem água e eles [data center] vão consumir bastante. Maravilha, bom demais", ironiza Nunes.
A falta d’água é uma constante na região. De acordo com o Atlas Digital de Desastres no Brasil, Caucaia enfrentou situação de emergência por estiagem ou seca em 16 dos últimos 21 anos.
Lideranças indígenas Anacé, moradores e movimentos sociais já levaram o caso ao Ministério Público Federal, ao Ministério Público do Ceará e também enviaram cartas a autoridades estaduais e federais, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o governador Elmano Freitas.
O projeto do data center, que terá o tamanho de 20 campos de futebol, será instalado a apenas dois quilômetros do Lagamar do Cauípe, a maior reserva hídrica do estado e território tradicionalmente ocupado pelos Anacé.
"Se é tão pouca água que eles vão usar, por que não coloca [o data center] lá distante? Por que na beirada do rio? Por que em cima do 'território indígena'?", questiona Roberto Anacé, cacique do povo Anacé da Terra Tradicional, em entrevista ao veículo.
A promessa de que a água será reutilizada em circuito fechado e retirada por meio de poços artesianos não convence os moradores, que exigem transparência.
Uma das preocupações centrais está no fato de o projeto ter recebido licenciamento ambiental simplificado, sem um Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA).

"Dezenas de indústrias foram licenciadas como se fossem a única naquele território e de maneira injusta, com a invisibilização das populações do campo indígenas e com um processo de invisibilização programático", explica Jeovah Meireles, professor da Universidade Federal do Ceará.
O Intercept revelou que o empreendimento pode consumir, em sua fase inicial, energia equivalente ao uso de 2,2 milhões de brasileiros. Se fosse uma cidade, seria a sétima maior consumidora de energia do país.
Promessas de água ficaram no papel
Enquanto isso, comunidades como a do Feijão aguardam há mais de uma década por água encanada. Nunes lembra que a companhia de abastecimento instalou hidrômetros, mas a água nunca chegou. "Muitos deles já arrancaram o relógio da frente das casas. Minha avó mesmo foi uma que tirou, porque perdeu a esperança", relata.
Em nota ao Intercept, a Cagece informou que não atende comunidades como Feijão e aldeias da Japuara por não estarem no contrato de concessão. Já a prefeitura de Caucaia não respondeu às perguntas feitas pela reportagem.
Mesmo diante da ausência de consulta prévia, como determina a Convenção 169 da OIT, a Superintendência de Meio Ambiente do Ceará, a Semace, emitiu a licença prévia do empreendimento.
"É uma área que não abrange terras indígenas homologadas ou com portaria de interdição, está em estudo”, declarou Ulisses Costa, diretor da Semace. A posição, no entanto, é contestada pela Funai, que reforça o direito dos povos tradicionais à consulta livre e informada, mesmo sem demarcação.
"O Estado veio com a seguinte história: nós te damos os poços se vocês derem a água do rio para o complexo. E aí a gente começa uma guerra dizendo que a água não é mercadoria", lembra Paulo Anacé, da Grande Aldeia Cauípe.

O sentimento é de injustiça histórica, mas também de resistência. Nunes, que após dez anos conseguiu uma cisterna graças a um programa da sociedade civil, resume a desigualdade que vivencia: "Quer dizer que os grandes vêm para lucrar e os pobres ficam à mercê?".
Na representação protocolada junto ao MPF, os movimentos pedem a suspensão imediata do licenciamento e alertam para o risco de exaustão do aquífero Dunas. Um dos trechos questiona os dados fornecidos pela Casa dos Ventos, afirmando que o consumo projetado está "muito abaixo dos padrões internacionais para empreendimentos similares".
A ausência de uma política nacional para regulamentar data centers no Brasil é apontada como fator agravante.
"Esse projeto traz tanto a questão do enfraquecimento dos instrumentos de proteção e do licenciamento ambiental, que já é uma prática do governo do estado do Ceará, quanto essa intensificação da insegurança hídrica e energética", critica Katley Ellen, da organização Engajamundo, que instalou um outdoor sobre o tema em Caucaia.
A disputa pela água no semiárido nordestino evidencia, para os movimentos sociais e para as comunidades tradicionais, uma política marcada por desigualdade no acesso aos recursos, ausência de participação popular e falta de transparência nos acordos firmados.
"Sempre foi uma disputa entre a água para a sociobiodiversidade e a água para esse uso perdulário", conclui Meireles.
"Perdulário porque é um volume bastante intenso no semiárido brasileiro, no período que nós estamos no primeiro quarto do século XXI, utilizando água dessa forma, com inequidade, com injustiça hídrica e sem a participação popular comunitária, sem consulta prévia, livre, informada".

