
EXCLUSIVO: Aliciado pelas redes, brasileiro morreu pela Ucrânia após ser enviado ao front com braço quebrado

O brasileiro Gabriel Pereira, 21, ex-militar e funcionário de uma empresa de transporte rodoviário, deixou o país sem avisar a família.
Foi para a zona de conflito atraído por promessas de altos salários e apoio logístico feitas por perfis em redes sociais.

Segundo o irmão, o professor de educação física Gustavo Alves Ferreira, 28, a oferta incluía "salário de até 25 mil reais, seguro de vida e ajuda de custo", mas a realidade foi outra.
Em entrevista exclusiva à RT Brasil, Gustavo afirma que o aliciamento de estrangeiros para o Exército ucraniano acontece de maneira informal, por meio de páginas no Instagram com formulários de alistamento. "A gente acredita que ele foi aliciado por meio dessas páginas nas redes sociais", diz.
Gabriel preencheu um dos formulários e viajou sozinho à Europa. Disse à família que iria para a França, mas a mentira foi descoberta por acaso, após uma notificação inesperada. "Foi assim que descobrimos. Ele pegou um Uber da Polônia para a Ucrânia, e o e-mail cadastrado era o da minha mãe", conta o irmão.
"Ele foi aliciado": como a propaganda digital recrutou Gabriel
De acordo com Gustavo, a entrada do irmão no conflito começou com promessas falsas feitas em perfis do Instagram*. "A gente acredita que ele foi aliciado por meio dessas páginas nas redes sociais, que prometem salário de até 25 mil reais, seguro de vida e ajuda de custo", relata.
A Gabriel, a justificativa foi que entraria na Legião Estrangeira Francesa. "Ele chegou a comentar com amigos que ia entrar para a Legião Estrangeira Francesa. Mas, quando questionamos, acabou deixando escapar que estava na Ucrânia. Ele não sabia nem qual era a moeda da França e falou da grívnia", diz.
A família acredita que ele tenha comprado a passagem por conta própria. “Provavelmente pegou emprestado, ou fez empréstimo, comprou no cartão de alguém. E ele comprou a própria passagem. A gente não sabia.”
Para Gustavo, a forma como o irmão partiu indica que os recrutadores orientam os alistados a esconder a verdade da família. "Muito provavelmente pedem para que eles omitam as informações porque sabem que os familiares vão ser prontamente contra essa decisão."
A verdade só veio à tona após um confronto direto. "Ele mentindo, falando que estava na França, mas depois a gente colocou ele na parede [...] ele acabou confirmando."
Sem treinamento, sem tradutor, sem contrato legível
Ao chegar à Ucrânia, Gabriel foi enviado a um centro de treinamento perto de Kiev, junto com outros brasileiros, colombianos e um angolano. Segundo o irmão, os estrangeiros têm os documentos retidos e são obrigados a assinar contratos com as Forças Armadas ucranianas.
"Esses documentos estão na língua ucraniana. Os meninos estavam me contando, me falando, eles chegam lá, pegam o celular mesmo para traduzir. Eles abrem a câmera, pegam o tradutor do celular para traduzir os termos do contrato", diz Gustavo.
Não havia opção de desistência. "Mesmo que ele se arrependa, chegando lá, ele não tem o que fazer. Ele não tem como voltar, ele não tem emprego. Ele vai ter que assinar o contrato se ele quiser comer", relata.
"A facilidade é chegar lá e assinar o contrato. Depois que você assinou o contrato, a vida é nua", diz Gustavo, referindo-se à formalização com o Exército ucraniano.
Na linha de frente, ferido, com fuzil: "não era missão, era suicídio"
Gabriel foi colocado na infantaria de impacto, na linha de frente. "O meu irmão estava nessa primeira linha", afirma Gustavo.
Segundo ele, o jovem atuava sem suporte técnico, apenas segurando posição com fuzil ao lado de dois soldados. "Ele não estava operando drone, não estava em funções técnicas. Ele estava com fuzil, segurando posição, com outros dois soldados. [...] Isso não é missão, é suicídio."
Para Gustavo, existe discriminação na designação dos postos. "Mandam os brasileiros, colombianos, angolanos. Os ucranianos não vão." A justificativa que ouviu dos combatentes: "Nas palavras deles, para servir de colete para o ucraniano."
Inicialmente, Gabriel cumpria funções de apoio, segundo relatos de colegas. "Ele trabalhava em função de levar e trazer suprimentos. Ele levava água, buscava coisa, levava medicamento."
Estava na região de Izium, próxima à fronteira com a Rússia. Mesmo ferido, foi mantido em combate. "Ele estava com o braço quebrado [...] Foi obrigado a permanecer na posição ferido. [...] Tem prova disso, é vídeo."
Circunstâncias da morte ainda são incertas
A confirmação da morte não veio das autoridades ucranianas, mas de um colega de combate. "Existe o que a gente chama de contato seguro. Quando ele vai para uma missão, ele deixou o telefone dele com um colega. Só ligaria nesse caso, em caso de morte, para avisar a família", relata Gustavo.
"O que eu sei, assim, que é o mais próximo da verdade, porque quem contou foi a pessoa que estava lá com ele, né? [...] Eu fico na dúvida, até se não foi situação de fome, desidratação."
Sem suprimentos e sem retorno: urina com café para sobreviver
Nas semanas finais, as condições se agravaram. Faltava comida, água e suporte mínimo.
"Eles estavam tomando urina com café e açúcar para poder hidratar, porque não estava chegando mais alimentos, né? Alimento, água, tal, suprimentos, não estavam chegando."
Os soldados eram enviados sem aviso. "Eles pegam, retêm os documentos, a administração do grupo pega as coisas deles, coloca dentro de um carro, joga eles dentro de um carro e fala assim: ‘vai pra posição’. E nem conta qual é a posição que eles estão indo."
Indenização milionária sob suspeita de fraude
A família tenta assegurar o cumprimento do contrato, que previa repatriação do corpo ou envio das cinzas, além de seguro por morte. O valor seria "alguma coisa entre 300 e 350 mil", segundo Gustavo, mas não se sabe em qual moeda.
"Se a administração da terceira brigada confirmar a morte do meu irmão, eles param de receber a verba que era do salário do meu irmão. Então, eles querem que meu irmão siga desaparecido para continuar recebendo dinheiro na verba que viria para o salário dele", denuncia.
Gustavo também relata tentativas suspeitas de pessoas oferecendo ajuda jurídica. "Eles pedem para assinar um documento falando que podem representar ele legalmente. [...] O nosso medo é que essas pessoas estejam agindo de maneira maldosa para, de repente, assumir os direitos dele em contrato."
"Ela pode ser uma agente do governo. E devolve o dinheiro para o governo para financiar", desconfia.
Segundo Gustavo, os estrangeiros são induzidos a optar pela cremação. "Como muitos deles acham que vão dar despesa para a família se assinarem a opção de enviar o via caixão, eles optam de cara pela opção de cremação." Essa pode ter sido a escolha de Gabriel.
Outros brasileiros, mesmo drama
Desde a morte de Gabriel, Gustavo mantém contato com outras famílias de brasileiros na mesma situação. "Tem a prima do Gustavo Lemos [de Santa Catarina], tem esse cara que está lá na Ucrânia tentando voltar e não consegue porque eles não deixam", afirma.
Entre os relatos, há denúncias de imposições e retenção de documentos. "Eles estão sendo obrigados a ir para as posições. Eles não podem não aceitar", diz. "Eles pegaram o passaporte, estão com os documentos retidos."
Os pertences de Gabriel estão sob custódia militar, fora da zona de combate. A família tenta recuperar os itens antes que a área seja retomada por tropas russas.
"A gente está atento a fazer uma pressão política para que eles assumam e que eles cumpram com o que é o dever deles, que está assinado em contrato."
Gustavo afirma ter buscado apoio do governo brasileiro, sem sucesso. "Eu mandei um e-mail para a divisão de apoio do Itamaraty. Quando eles responderam, pediram para eu enviar os dados. E aí não responderam mais." Segundo ele, o consulado em Kiev afirmou apenas que "não tem informação sobre".
Combatentes descartáveis: "Massa morta segurando o tempo"
Gustavo vê no caso do irmão o retrato do papel descartável dos combatentes estrangeiros, especialmente os latino-americanos. Para ele, esses soldados não têm influência nos rumos do conflito e são usados como peças substituíveis.
"O que os soldados estão fazendo ali na guerra? Eles estão segurando o tempo. Eles estão tentando fazer ela durar mais tempo para que os políticos conversem, morrendo e servindo de massa morta mesmo", diz.
A revolta se mistura ao luto. Gabriel morreu quatro meses após chegar ao front. "Meu irmão morreu com quatro meses. [...] Não tem vida fácil."
O irmão cita a música "War Pigs", do Black Sabbath, para resumir o que sente. "Eles conseguiram resumir em música, em poesia, o que de verdade significa uma guerra."
A letra diz: "No campo, os corpos queimam enquanto a máquina de guerra continua funcionando. Morte e ódio à humanidade, envenenando as mentes daqueles que sofreram lavagem cerebral".
Ausência de ritos e dor silenciosa
A ausência de um velório tradicional agravou a dor da família. "Quando você não tem o velório, quando você não tem o corpo, falta alguma coisa. [...] Falta alguma coisa dentro desse ritual que sempre foi comum pra nossa cultura."
A família busca consolo na fé. "Certamente, como cristão, a gente acredita que ele está em um lugar muito melhor, de muita luz, de paz e serenidade."
"Queremos que cumpram o contrato"
Gustavo afirma que a família não busca compensação financeira. Quer apenas que o contrato seja cumprido.
"A gente não quer, a gente não precisa, nesse momento, que o governo arque com as coisas. O que a gente quer é que eles cumpram com a parte deles do contrato."
"Se o governo ucraniano for honrado e for cumprir com os termos do contrato, nós não temos obrigação com despesa financeira. [...] O que a gente quer é que eles cumpram com a parte deles do contrato, que é recuperar o corpo do irmão, testar a baixa e enviar."
A intenção é evitar que o nome de Gabriel se perca entre tantos jovens enviados ao front por promessas falsas e abandonados à própria sorte.
*Classificada na Rússia como uma organização extremista, cujas redes sociais são proibidas em seu território.






