
Quais são as raízes da discórdia entre Tailândia e Camboja?

A disputa de fronteira entre Tailândia e Camboja se arrasta há mais de um século, com disputas em diversos trechos não demarcados ao longo dos 817 km de fronteira que separam os dois países.
As tensões, intensificadas em maio desde ano após a morte de um soldado cambojano em um breve tiroteio, aumentaram significativamente nas primeiras horas da quinta-feira (24), com troca de tiros, bombardeios na área disputada e a retirada mútua de diplomatas.
Disputa de fronteira mortal entre 🇹🇭Tailândia e 🇰🇭Camboja: o que está acontecendo? 👉https://t.co/O3NS2GwEno Bangcoc e Phnom Penh culpam um ao outro pelo início das hostilidades. pic.twitter.com/H0tDkNiRMw
— RT Brasil (@rtnoticias_br) July 25, 2025
A contenda prolongada vai além da questão territorial. Suas raízes estão ligadas à era colonial, a rivalidades nacionalistas e à disputa por influência regional, com foco histórico e simbólico no templo Preah Vihear e áreas vizinhas.
Pegada colonial
O templo Preah Vihear, dedicado ao deus hindu Shiva, é considerado um monumento sagrado por ambos os países: o Camboja o vê como parte central de sua identidade nacional, enquanto a Tailândia o considera herança cultural.

Construído entre os séculos 9 e 12 pelo Império Khmer, que dominava grande parte do Sudeste Asiático a partir de Angkor, o templo passou a ser disputado após o declínio desse império. A região ficou sob controle de reinos tailandeses como Ayutthaya e, mais tarde, Sião.
No início do século 20, com o Camboja sob domínio francês na Indochina, a França assinou acordos com o Sião para definir as fronteiras. Um mapa elaborado pelos franceses em 1907 colocou o templo em território cambojano — posição aceita pelo Sião à época, mas posteriormente contestada.

Na década de 1950, a Tailândia rejeitou o mapa de 1907 e, em 1953, tropas tailandesas ocuparam o templo.
Indo à Corte Internacional de Justiça
Em 1959, o Camboja levou o caso à Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia –, alegando que a Tailândia havia invadido o território do templo –, pedindo que a CIJ reconhecesse sua soberania sobre o local e ordenasse a retirada das tropas tailandesas.
A Tailândia contestou, mas a CIJ decidiu, em 1962, a favor do Camboja.

A Corte baseou-se no Tratado Franco-Siamês de 1904 e no mapa de 1907, concluindo que o templo estava em território cambojano e também determinou a retirada de forças tailandesas e a devolução de artefatos retirados desde 1954.
"A Tailândia apresentou vários argumentos para demonstrar que o mapa não era vinculativo. Uma de suas alegações era que o mapa nunca havia sido aceito pela Tailândia ou, alternativamente, que, se a Tailândia o aceitou, o fez apenas na crença equivocada de que o limite indicado correspondia à bacia hidrográfica", segundo a CIJ.

A disputa, no entanto, não foi encerrada. A Tailândia alegou que a decisão se limitava ao templo e não às áreas adjacentes e passou então a disputar tecnicamente uma "zona cinzenta" de cerca de 6 km² ao redor do templo, inclusive com novos mapas.
Em 2008, enviou tropas à região, alegando que se tratava de território ainda indefinido.
Da herança sagrada ao campo de batalha
O conflito reacendeu em 2008, quando a Unesco declarou o templo de Preah Vihear Patrimônio Mundial sob administração cambojana. A decisão provocou protestos da Tailândia e gerou diversos confrontos armados na região.

Em 2011, o Camboja voltou à CIJ pedindo uma interpretação da decisão de 1962. A Corte reafirmou a soberania cambojana sobre o templo, mas não definiu o status das encostas ocidentais, ainda reivindicadas pela Tailândia.
Desde então, choques armados esporádicos causaram mortes e deslocamentos. Em 2011, a CIJ determinou a retirada das tropas e a criação de uma zona desmilitarizada — decisão rejeitada pela Tailândia.
Nacionalismo e geopolítica
O conflito tem sido explorado politicamente em ambos os países. No Camboja, o templo simboliza resistência histórica à dominação tailandesa. Na Tailândia, setores políticos e militares usam a disputa para reforçar discursos patrióticos, especialmente em períodos de crise interna.
A rivalidade se estende a outros pontos da fronteira, como o templo Ta Moan Thom, nas montanhas Dangrek, província de Surin, atualmente sob controle tailandês.
Assim como em Preah Vihear, o mapa franco-siamês de 1907 não definiu claramente a área, o que gerou confrontos também nessa região durante a crise de 2008, com vítimas de ambos os lados.
Mais de cem anos após o início do impasse, a recente escalada evidencia como fronteiras coloniais mal traçadas, disputas simbólicas e nacionalismo seguem alimentando conflitos duradouros.

