Pesquisa aponta que governo brasileiro transfere bilhões às big techs e ignora soluções nacionais

Estudo evidencia concentração de contratos públicos em quatro big techs e propõe alternativas nacionais.

Um estudo inédito produzido por pesquisadores da USP, FGV e UnB revela que o setor público brasileiro destinou ao menos R$ 23 bilhões entre 2014 e 2025 à contratação de softwares, serviços em nuvem e soluções de segurança digital oferecidos por grandes empresas estrangeiras de tecnologia.

O documento, intitulado "Contratos, Códigos e Controle – A Influência das big techs no Estado Brasileiro", alerta para a dependência estrutural do país em relação a corporações como Microsoft, Oracle, Google e Red Hat, e denuncia os impactos dessa escolha sobre a soberania digital nacional.

Apenas entre junho de 2024 e junho de 2025, o valor repassado pelo setor público às big techs ultrapassou R$ 10,35 bilhões.

Segundo os autores, esse montante seria suficiente para manter por um ano todas as bolsas de mestrado e doutorado do país, cobrindo mais de 350 mil estudantes. Ainda segundo o estudo, com os valores acumulados em onze anos, seria possível construir e instalar ao menos 86 data centers Tier 3 de 5 MW, fortalecendo a infraestrutura tecnológica sob controle nacional.

"A metáfora do aluguel digital ajuda a ilustrar a situação: o Brasil está pagando por soluções que não domina, que não pertencem ao seu ecossistema e que não podem ser auditadas ou controladas", explicam os pesquisadores.

O levantamento utilizou dados de cinco bases públicas, incluindo ComprasNet, PNCP e Painel de Preços, e identificou um padrão recorrente: a contratação sistemática de soluções prontas e proprietárias, muitas vezes mediadas por revendedores locais, o que dificulta a rastreabilidade dos contratos e esconde os reais fornecedores.

As cifras reveladas pelo relatório evidenciam a concentração dos gastos em quatro empresas. A Microsoft aparece sozinha com R$ 3,27 bilhões em contratos no ComprasNet, sendo R$ 1,65 bilhão apenas no primeiro semestre de 2025.

No PNCP, Oracle (R$ 1,02 bi), Google (R$ 938 mi) e Red Hat (R$ 909 mi) lideram as contratações desde 2022.

A crítica ao "tecnofeudalismo"

Além dos valores envolvidos, o relatório aborda os riscos dessa dependência em termos de segurança nacional, autonomia tecnológica e proteção de dados sensíveis.

Os autores apontam que informações estratégicas, como prontuários médicos, dados de inteligência e sistemas de defesa, podem estar sendo processadas em servidores controlados por empresas sediadas no exterior, sujeitos à legislação de outros países, como o Cloud Act dos Estados Unidos.

A situação é descrita no estudo como uma espécie de "tecnofeudalismo", no qual plataformas privadas atuam como "senhores digitais", mediando políticas públicas, comunicações e decisões administrativas, sem transparência ou controle por parte do Estado brasileiro.

"A digitalização já faz parte do cotidiano do cidadão, mas as ferramentas que intermediam essas experiências não pertencem ao Estado", advertem os autores.

Alternativas e recomendações

O estudo não se limita à denúncia. Ele apresenta propostas concretas para reduzir a dependência tecnológica do país, como a criação de uma nuvem pública federada, a priorização de softwares desenvolvidos por universidades e centros públicos de pesquisa, e a exigência de licenciamento aberto e interoperabilidade nas compras públicas.

Entre os exemplos citados, destaca-se o C3SL da Universidade Federal do Paraná, que há mais de duas décadas desenvolve soluções de software livre e ciência de dados, mas é frequentemente preterido em favor de soluções proprietárias estrangeiras.

A publicação também sugere a criação de um Plano Nacional de Soberania Digital, com metas interministeriais, governança pública e participação social. O objetivo é estruturar uma política de longo prazo que priorize o desenvolvimento tecnológico autônomo, sob jurisdição brasileira.

Cenário contraditório

O alerta do estudo ocorre em meio a uma movimentação do Governo Federal para atrair data centers estrangeiros com isenções fiscais, como publicamos em 19 de maio de 2025. A proposta, apresentada pelo ministro Fernando Haddad nos Estados Unidos, naquela ocasião, previa a desoneração de impostos para importação de equipamentos, dos quais 85% são de origem estrangeira.

Neste mesmo sentido, o jornal Valor Econômico mostrou que o Brasil enfrenta um aumento expressivo na demanda de energia para centros de dados, com estimativas de que o consumo dos projetos em análise alcance 13,7 GW até 2037.

A combinação entre incentivos fiscais sem contrapartidas robustas, contratos públicos concentrados em multinacionais e ausência de investimentos estruturais em soluções nacionais forma, segundo os autores do estudo, um cenário que compromete o futuro da soberania digital do Brasil.

Essa contradição ganhou novos contornos um mês depois, em junho. Segundo nota oficial do Ministério da Fazenda, representantes da pasta participaram de uma missão à Califórnia entre os dias 10 e 13 daquele mês, com o objetivo de ampliar parcerias com Big Techs e atrair investimentos em data centers sustentáveis e inteligência artificial.

A agenda incluiu reuniões com empresas como Google X, Nvidia, Oracle e OpenAI, além de encontros com autoridades ambientais da Califórnia para discutir integração de mercados de carbono e regulação ambiental.

A missão, parte do Plano de Transformação Ecológica, foi tratada como estratégica para posicionar o Brasil como polo internacional em setores como data centers, bioeconomia e tecnologia de baixo carbono.

Entre os incentivos apresentados pelo governo, destacaram-se a desoneração de equipamentos sem similar nacional, a criação do Visto Verde para mão de obra qualificada e propostas de parceria em infraestrutura digital.

Segundo o próprio governo, uma das frentes discutidas com a Universidade de Stanford envolveu o mapeamento de espaços de conexão para data centers, incluindo critérios de precificação de serviços ambientais aplicados ao setor.

No entanto, assim como ocorreu com o anúncio feito por Haddad em maio, não foram divulgados estudos públicos sobre os impactos socioeconômicos ou o custo-benefício das medidas para o país