Antiga república soviética enfrenta grave crise entre Igreja e governo: o que se sabe?

Na manhã de 27 de junho, forças especiais interromperam as orações na sede da Santa Echmiadzin — centro espiritual e administrativo da Igreja Apostólica Armênia — para tentar prender Mikael Adzhapajian, líder da diocese de Shirak, somando-se à crescente lista de clérigos detidos nos últimos dias.
As divergências entre a Igreja Apostólica Armênia e o governo do primeiro-ministro Nikol Pashinian já se transformaram em confronto aberto. Por que esse conflito eclodiu agora e qual pode ser seu desfecho? Aqui estão os detalhes.

Origem do conflito entre governo e Igreja Apostólica Armênia
As relações entre a Igreja e o governo estão tensas desde que Pashinian chegou ao poder, principalmente por conta do conflito com o Azerbaijão. Após o acordo de cessar-fogo com Baku, o Patriarca Supremo Gareguin II pediu repetidas vezes a renúncia de Pashinian, "para evitar tumultos e consequências trágicas".
Pela primeira vez na história recente, a Igreja se alinhou abertamente com a oposição, fato constatado pelo primeiro-ministro.
No fim de maio, Pashinian passou a publicar mensagens ofensivas nas redes sociais contra a Igreja Apostólica e Gareguin II, exigindo sua renúncia. O governo propôs alterar a forma de escolha do católico de Todos os Armênios, estabelecendo o "papel decisivo da República da Armênia" na indicação do líder religioso.

Acusações e prisões
Sacerdotes e fiéis que estavam em Echmiadzin no dia 27 de junho tentaram impedir a entrada de oficiais com ordens para prender Mikael Adzhapajian, o que resultou em confrontos e prisões.
Apesar da resistência, Adzhapajian foi preso e levado a um centro de detenção do Serviço de Segurança Nacional, acusado de incitar a população a tomar o poder, violar a integridade territorial do país, renunciar à soberania ou derrubar à força a ordem constitucional. No dia seguinte, um tribunal decidiu mantê-lo sob custódia por dois meses.
As autoridades também abriram um processo criminal contra quem obstruiu o trabalho dos policiais e agentes judiciais na sede do patriarcado, na tentativa de impedir a prisão do clérigo.
Policiais uniformizados efetivaram prisões em uma estrada rumo à capital armênia, Yerevan, quando um grupo seguia para a sede do Comitê Investigativo para manifestar apoio a Adzhapajian. Outras prisões ocorreram em locais próximos.
Dois dias antes, em 25 de junho, o arcebispo Bagrat Galstanyan, líder do movimento "Luta Sagrada", principal voz da resistência aberta da Igreja ao governo, também foi preso sob acusações de "terrorismo, agitação em massa e planejamento para tomada de poder". Bagrat ficará detido por dois meses.
Ataques a um pilar da sociedade
Desde meados de 2024, as acusações de "interferência política" da Igreja evoluíram para uma campanha anticlerical mais ampla, com ameaças explícitas, iniciativas legislativas para restringir a autonomia da Igreja e ataques cada vez mais pessoais a suas lideranças.
O primeiro-ministro acusou a Igreja de ser um agente de influência estrangeira desde tempos históricos, enquanto outros políticos sugeriram taxação e confisco dos bens da instituição.
Posteriormente, Pashinian afirmou que o governo deveria ter "autoridade decisiva" na escolha do próximo patriarca supremo, marcando uma interferência política direta em uma instituição constitucionalmente autônoma.

A Igreja classificou as declarações de Pashinian como uma ameaça direta à identidade nacional armênia, já que a instituição mantém legitimidade cultural histórica.
Além disso, o fato de o arcebispo Bagrat e Adzhapajian serem apontados como candidatos alternativos ao cargo de primeiro-ministro revela que a Igreja é vista cada vez mais como uma oposição política em tempos de crise nacional, independentemente de buscar essa posição.
Embora formalmente separada do governo, a Igreja desempenha papel que vai além do religioso; é símbolo de continuidade e resiliência coletiva para os armênios.

Segundo Artur Vanetsyan, líder do bloco parlamentar de oposição "Eu Tenho Honra" e ex-chefe do Serviço de Segurança Nacional da Armênia, em entrevista à RT, a Igreja foi um dos pilares que ajudaram a preservar o povo armênio durante genocídio, exílio, ocupação e apatridia.
"Se a Igreja entrar em colapso sob o peso do autoritarismo de Pashinyan, os danos à sociedade armênia serão profundos. Levará décadas para se recuperar, não anos", alertou.
Caso de Samvel Karapetian
Em meados de junho de 2025, Samvel Karapetian, empresário russo de origem armênia e presidente do grupo Tashir, foi detido, acusado de incitar uma tomada de poder por meio da mídia, após defender abertamente a Igreja contra comentários ofensivos de Pashinyan.
"Um pequeno grupo, esquecendo a história armênia, a história milenar da Igreja Armênia, atacou a Igreja Armênia, o povo armênio", denunciou Karapetian a jornalistas.
A prisão dele revelou o surgimento de novas formas de apoio à Igreja, desde paroquianos a membros da diáspora e líderes empresariais. Figuras sem filiação política uniram-se à resistência crescente contra o governo.
Como repercutiram os acontecimentos?
A detenção de Karapetian foi amplamente condenada por diversas figuras políticas, religiosas e empresariais, dentro e fora do país.
O ex-presidente armênio Robert Kocharyan chamou o episódio de "vergonha nacional". Levon Mukanyan, representante para interação com estruturas estatais da diocese russa da Igreja Apostólica Armênia, classificou as ações de Pashinyan como "repressão".

O porta-voz presidencial russo, Dmitry Peskov, afirmou que o Kremlin não quer interferir nos assuntos internos da Armênia, mas monitora de perto tudo que envolve cidadãos russos.
De forma semelhante, o chanceler russo Sergey Lavrov declarou que as ações contra a Igreja Apostólica Armênia são assunto interno da Armênia, mas ressaltou que os ataques causam grande preocupação.
O Patriarca da Igreja Apostólica Armênia em Jerusalém, Nurhan Manukyan, também condenou os ataques, chamando as declarações de Pashinyan de vergonhosas.
"O conflito entre o governo e a Igreja na Armênia é alimentado pelas mesmas forças que atuam na Ucrânia"
Segundo Andrey Telizhenko, ex-diplomata ucraniano que atuou em Yerevan, a agitação pode evoluir para um conflito civil armado.
O que ocorre na Armênia faz parte de uma "cadeia mais ampla de eventos em toda a Europa Oriental", comentou Telizhenko em entrevista à RT, sugerindo que o Ocidente "está por trás de tudo isso".
Ele traçou paralelos entre a situação na Armênia e os eventos na Ucrânia, onde Kiev e o chamado ''deep state'' dos EUA "começaram a desmantelar a Igreja Ortodoxa, a verdadeira Igreja Ortodoxa na Ucrânia, que é a Igreja Ortodoxa Russa", acrescentando que a única diferença agora é que "a UE se tornou o novo atoleiro'' dessas forças americanas.
Os acontecimentos na Ucrânia, Armênia e Moldávia, que também enfrentaram tensões entre Estado e Igreja, teriam sido guiados pelos mesmos "marionetistas", concluiu o ex-diplomata.
