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Com apoio da Rússia, cidade gaúcha preserva cultura russa sufocada pela ditadura militar no Brasil

Campina das Missões manteve tradições eslavas vivas mesmo durante a repressão imposta pelo regime instalado em 1964.
Com apoio da Rússia, cidade gaúcha preserva cultura russa sufocada pela ditadura militar no BrasilReprodução/Divulgação/Prefeitura de Campina das Missões

Durante a ditadura militar no Brasil, a cultura russa foi sistematicamente marginalizada. Expressões religiosas, linguísticas e folclóricas associadas à imigração eslava passaram a ser vistas com desconfiança, especialmente por seu vínculo com o cristianismo ortodoxo e com países considerados "fora do eixo ocidental".

Imigrantes com parentes na União Soviética eram obrigados a destruir correspondências ou a cortar os contatos por cartas para não se tornarem alvos da perseguição do regime brasileiro, segundo relatos ouvidos pela tradicional Gazeta Zero Hora.

Nesse contexto, Campina das Missões, no interior do Rio Grande do Sul, viu sua identidade ser empurrada para a clandestinidade cultural. Mas resistiu.

Fundada entre 1909 e 1912, a cidade foi o destino de mais de 19 mil imigrantes russos vindos da Sibéria, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O território, inicialmente uma clareira entre os rios Tumurupará e Comandaí, recebeu o nome de "Palianka" (поля́нка, em russo), termo usado para se referir a áreas abertas em meio a florestas, como uma clareira onde se estabelece um povoado; ou campo pequeno. Dali surgiria o nome Campina.

As primeiras casas, chamadas "dachas" (дачи, em russo), foram erguidas à força de enxada, foice e facão.

A fé ortodoxa foi central desde o início. Já em 1912, os colonos construíram o primeiro templo ortodoxo do Brasil, dedicado ao Apóstolo São João Evangelista. O culto religioso, a tradição comunitária e o idioma russo passaram a compor a vida cotidiana da nova colônia.

Apagamento forçado pela repressão militar

Com a instalação do regime militar em 1964, práticas religiosas e culturais que destoassem do modelo nacionalista cristão ocidental foram colocadas sob vigilância.

Línguas estrangeiras, como o russo, deixaram de ser ensinadas. Celebrações tradicionais e símbolos ortodoxos passaram a ser desestimulados. Famílias foram aconselhadas a não expor sua origem para evitar perseguições ou desconfiança.

Em Campina das Missões, o impacto foi silencioso, mas profundo. A herança eslava passou a sobreviver nos bastidores: mantida em rituais privados, na oralidade e na resistência discreta das famílias mais antigas. A religiosidade se preservou em pequenas igrejas e cemitérios da zona rural, enquanto os registros históricos ficaram limitados a arquivos locais ou à memória de descendentes.

O renascimento da identidade russa

A reconstrução da identidade começou de forma mais estruturada na década de 1990. Em 1992, foi criado o Grupo Folclórico Tróika, com o objetivo de resgatar danças, músicas e trajes típicos da cultura russa. Desde então, mais de 10% da população local já passou pelo grupo, fortalecendo o sentimento de pertencimento.

A valorização da herança russa em Campina das Missões também se manifesta no espaço urbano. Em 2009, por ocasião do centenário da imigração russa, foi inaugurado no trevo de acesso principal da cidade, na RS-307, o Monumento Russo.

A obra representa uma família de imigrantes com feixes de trigo, simbolizando a fé, o trabalho e a busca por novos horizontes.

O monumento também inclui a cruz ortodoxa e a figura do Apóstolo São João Evangelista, padroeiro da Igreja Ortodoxa, reafirmando o papel central da religião na identidade dos colonos. Trata-se de um reconhecimento público à contribuição russa na formação cultural e social do município.

O reconhecimento oficial veio em 2021, quando o governo do estado sancionou a Lei nº 15.649, conferindo a Campina das Missões o título de "Berço Estadual da Cultura Russa". A solenidade, realizada no Palácio Piratini, marcou a reintegração da memória russa à história institucional do Rio Grande do Sul.

Hoje, o município mantém vários marcos dessa herança: a Praça da Matriz exibe elementos arquitetônicos germânicos e eslavos; a Praça São Vladimir abriga a primeira capela ortodoxa pública do Brasil; na Linha Paca Sul estão a Igreja Ortodoxa, o primeiro cemitério ortodoxo do país e o futuro Jardim Bíblico do Rio Grande do Sul.

A cúpula ortodoxa, símbolo clássico da arquitetura russa, foi incorporada à logomarca oficial da cidade, consolidando sua presença também no plano visual e institucional.

Reconhecimento internacional e laços com a Rússia

Em junho de 2025, Campina das Missões deu um passo além ao formalizar acordos de irmandade com duas regiões da Rússia: Irkutsk, na Sibéria, de onde vieram as primeiras famílias imigrantes, e o distrito de Voskresensky, na Região de Nizhny Novgorod. 

A cerimônia em Irkutsk foi realizada em 16 de junho e incluiu a inauguração de uma exposição fotográfica sobre a cidade brasileira em um dos museus locais.

Segundo a prefeitura, Campina das Missões foi o primeiro município sul-americano a realizar missão diplomática na cidade siberiana. A delegação brasileira foi recebida por autoridades civis, religiosas e empresariais, incluindo o Metropolita Maximiliano da Igreja Ortodoxa da região e o Padre Inocêncio, que já atuou em Campina.

No dia 19, a comitiva formalizou o segundo acordo de irmandade, desta vez com o distrito de Voskresensky, na Região de Nizhny Novgorod. A cerimônia foi realizada no Kremlin regional e contou com a presença do chefe do governo local, Alexander Zapevalov, e da ministra de Relações Internacionais, Olga Guseva.

Resistência histórica como patrimônio

Mais do que tratados protocolares, os acordos firmados representam o reconhecimento de uma história que o Brasil institucional tentou apagar e que, graças à resistência local, pôde ser recuperada.

Campina das Missões se projeta hoje como um marco de identidade e de preservação cultural. Sua história reafirma que memória, quando sustentada por quem a vive, sobrevive até mesmo ao silêncio imposto pela repressão.