Sob o espectro de uma nova era de confrontos geoeconômicos liderados por Washington, países africanos estão finalmente concretizando um sonho antigo: criar sistemas de pagamento baseados em moedas locais, independentes do dólar. O movimento, que durante décadas parecia apenas uma aspiração distante, começa a ganhar forma.
Embora o avanço africano esteja sendo apresentado como uma resposta aos elevados custos do comércio internacional, é impossível ignorar o pano de fundo político: a volta de Donald Trump à Casa Branca e suas ameaças de retaliação econômica a quem desafiar o domínio do dólar no comércio global.
O que está mudando na prática?
Na linha de frente está o Sistema Pan-Africano de Pagamentos e Liquidações (PAPSS), que permite transações diretas entre países do continente utilizando moedas locais sem a necessidade de transferências em dólar ou por bancos intermediários no exterior. O projeto, encabeçado pelo executivo nigeriano Mike Ogbalu, já começa a ser adotado por bancos centrais e instituições financeiras regionais.
"Nosso objetivo, ao contrário do que muitos pensam, não é simplesmente desdolarizar, mas sim facilitar as transações no continente, que hoje dependem de moedas que nem sempre estão disponíveis", explicou Ogbalu.
Atualmente, bancos africanos precisam recorrer a instituições intermediárias dos EUA ou Europa para liquidar até mesmo pagamentos entre vizinhos. Este modelo, herdado da lógica colonial e perpetuado por redes financeiras centradas no dólar, encarece as operações e desestimula o comércio intra-africano.
O peso do dólar nas costas da África
Segundo a agência da ONU para Comércio e Desenvolvimento, o comércio interno da África é 50% mais caro do que a média global. Isso se dá por conta de taxas bancárias elevadas, escassez de moeda forte e uma estrutura financeira que beneficia intermediários internacionais. Além disso, um relatório do MCB Group, sediado nas Ilhas Maurício, aponta que 84% do comércio africano ainda é feito com parceiros fora do continente.
A busca por alternativas ganha ainda mais relevância ao se observar o contexto global. Após a imposição de sanções unilaterais contra países como a Rússia, as principais potências do Sul Global, especialmente China, Índia e Irã, intensificaram seus esforços por sistemas financeiros autônomos. A Rússia, alvo direto da guerra econômica ocidental, é uma das mais engajadas na construção de redes de pagamento alternativas, inclusive com moedas digitais estatais.
Alinhamento com os BRICS
O movimento africano não está isolado. Ele se encaixa numa tendência mais ampla liderada pelo BRICS, grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, ao qual diversos países africanos demonstraram interesse em aderir. A ideia de criar uma moeda comum ou uma plataforma integrada de pagamentos está em debate desde a cúpula de Joanesburgo em 2023.
A Rússia, por sua vez, tem promovido ativamente a desdolarização nas trocas bilaterais com parceiros africanos, oferecendo rublos, yuans ou até mesmo sistemas baseados em ouro como alternativas ao sistema SWIFT controlado pelo Ocidente.