As creches, até então consideradas espaços seguros, entraram na rota da repressão migratória nos Estados Unidos.
Em Nova York, uma mãe brasileira descreveu como um pesadelo o momento em que foi chamada para uma conversa reservada ao deixar o filho de três anos em uma creche no Queens.
Imigrante legalizada e residente nos Estados Unidos há um ano e meio, a fotógrafa Ana Beatriz Batista foi surpreendida com a pergunta da diretora: a criança era cidadã americana? O motivo: uma visita prevista de agentes do ICE (Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos EUA).
"Ela me chamou numa salinha e perguntou: 'José* is legal?'. Expliquei que ele nasceu no México, mas é filho de americano e tem a documentação completa", relatou Ana Beatriz, de 28 anos, em entrevista exclusiva à RT Brasil. "Ela me disse que o ICE viria à escola e que estavam recomendando que os pais de crianças em situação irregular não as levassem naquele dia".
Ana Beatriz afirma ter saído da creche revoltada. "Foi a primeira vez que vi algo assim tão diretamente ligado às crianças. Isso é terrorismo institucionalizado".
"Como você deixa seu filho na escola sem saber se ele ainda estará lá quando você voltar?", questionou.
O relato foi publicado inicialmente em vídeo na conta pessoal da brasileira no TikTok, na última quarta-feira (11). Nele, ela desabafa com revolta sobre o episódio vivido na creche, denuncia a perseguição a imigrantes e comenta que mães estariam sendo obrigadas a deixar o trabalho para buscar seus filhos com medo de que fossem levados pelo ICE.
"Estão levando as crianças sem as mães, porque as mães estão indo trabalhar... Pra mãe estar deixando o filho na creche é porque ela está trabalhando. Não é porque ela é vagabunda e está fazendo nada", declarou no vídeo.
A abordagem na creche não é um caso isolado. Nos últimos dias, a RT Brasil teve acesso a relatos de outras famílias brasileiras enfrentando situações semelhantes. A intensificação das operações de deportação nos Estados Unidos tem provocado um clima de medo generalizado entre comunidades de imigrantes.
"Querem deportar trabalhador"
No mesmo vídeo, ela criticou a hipocrisia dos apoiadores de Trump que vivem no Brasil e relatou que a maioria das pessoas que migram para os EUA, o fazem para trabalhar, mesmo que sem documentos.
Desde o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, o ICE tem trabalhado para cumprir uma meta de 1.800 deportações por dia, segundo informações da imprensa local. O objetivo anunciado é de retirar mais de um milhão de imigrantes apenas no primeiro ano de governo, superando todos os recordes anteriores.
A política do presidente dos Estados Unidos é baseada no desmantelamento de programas que facilitavam a permanência de estrangeiros no país, mesmo em casos de emergência humanitária.
A abordagem inclui a revogação de permissões de trabalho, fim do apoio a solicitantes de refúgio e cancelamento do Status de Proteção Temporária (TPS) para países como Venezuela, Cuba, Haiti e Nicarguá.
Em documento divulgado em 21 de março, o Departamento de Segurança Nacional dos EUA afirmou que a política migratória atual busca romper o que classifica como "círculo vicioso" da imigração ilegal.
De acordo com o relatório, os mecanismos de entrada temporária tinham como objetivo reduzir a sobrecarga sobre estados, cidades e ONGs envolvidas na recepção de migrantes. Contudo, segundo o governo, esse propósito não foi alcançado.
A nova política passa a tratar a imigração irregular como ameaça direta à ordem pública e à estabilidade administrativa.
Ao completar 100 dias no cargo, uma pesquisa promovida pelo Washington Post-ABC News-Ipsos indicou que 53% dos cidadãos dos Estados Unidos desaprovam a forma que Trump lida com o tema da imigração, enquanto 46% aprovam.
O discurso oficial sustenta que a rigidez das medidas é necessária para desestimular novas entradas, frear a atuação de redes de tráfico humano e reduzir a pressão sobre os sistemas de saúde e assistência social nos estados mais afetados pela chegada de estrangeiros, especialmente na fronteira sul.
No final de maio, a Suprema Corte autorizou o governo a revogar o status legal temporário de mais de 500 mil imigrantes desses países, mesmo com avaliações individuais ainda em andamento.
Segundo o New York Times, a decisão não foi unânime, com dois juízes se opondo à decisão. Ketanji Brown Jackson alertou que o tribunal ignorou "as consequências devastadoras de permitir que o governo encerrasse abruptamente a vida e o sustento de quase meio milhão de pessoas".
Caso Marcelo Gomes
Um dia após a decisão da Suprema Corte, o clima de repressão ganhou ainda mais visibilidade após a prisão de Marcelo Gomes, estudante brasileiro de 18 anos, detido enquanto se dirigia a um treino de vôlei em Milford, Massachusetts.
Segundo familiares, Marcelo vivia nos Estados Unidos há 13 anos e nunca cometeu qualquer infração.
"Os irmãos dele são muito pequenos e estão perguntando se algum dia vão vê-lo de novo", declarou a prima Julia Araújo à emissora CBS.
O caso gerou protestos e um pronunciamento da governadora de Massachusetts, Maura Healey: "O governo Trump continua a gerar medo em nossas comunidades, e isso está nos tornando todos menos seguros".
Impacto nas comunidades brasileiras
Ana Beatriz, que também mora próxima à comunidade brasileira em Newark, Nova Jersey, afirma ter presenciado ações do ICE em residências da região. "Eles bateram na porta, conversaram e foram embora. Mas o medo já tinha se espalhado. Adolescentes brasileiras saíram correndo da rua ao verem a viatura".
Segundo ela, o chamado "sonho americano" está ruindo. "Muita gente que veio para trabalhar honestamente já está voltando por conta própria, antes de serem deportadas. Outros estão presos em casa, com medo."
Ela destaca que grupos como o Quilombo, coletivo de brasileiros pretos imigrantes em Nova York, têm atuado com apoio jurídico e político, inclusive junto ao consulado brasileiro. "Estamos todos sendo oprimidos. E mesmo quem tem documento, como eu, não se sente seguro".
Brasil observa em silêncio
Em meio a prisões de estudantes, visitas a creches e ameaças veladas, a comunidade internacional acompanha com preocupação a escalada do governo dos Estados Unidos contra os imigrantes.
A RT Brasil apurou que nem todas as representações diplomáticas brasileiras têm oferecido respostas à altura da gravidade da situação. Ana Beatriz deixa um recado aos brasileiros que acompanham de longe:
"Acho que o ser humano precisa ser tratado como ser humano. Não é questão de legalidade, é questão de dignidade. Prender crianças, separar famílias... Isso é terrorismo."
*Nome fictício